domingo, 19 de março de 2017

A TRANSPOSIÇÃO DO SÃO FRANCISCO NÃO É SÓ FESTA

Para não causar danos ambientais e sociais, o projeto depende de outros que garantam a sustentabilidade do rio e a qualidade da água


Quando o Brasil ainda era império e dom Pedro II governava, surgiu a proposta de transposição das águas do Rio São Francisco como solução para as recorrentes secas do Semiárido nordestino. O tema voltou a frequentar as discussões nacionais no ocaso do Estado Novo getulista e reapareceu como um primeiro projeto efetivo apenas nos estertores da ditadura, durante o governo Figueiredo.

Após a redemocratização, a ideia de integrar bacias com as águas do São Francisco passou pelos governos Itamar Franco e FHC, mas somente saiu do papel com o presidente Lula. As obras avançaram com Dilma Rousseff e, no último dia 10 de março, Michel Temer inaugurou o eixo leste, enquanto o povo agradecia a Lula pela obra.

A festa de Temer na inauguração indica que o presidente tem a intenção de se apresentar como o grande pai da obra. Que assim o seja, e que o presidente assuma também os problemas associados ao megaprojeto. Colher os louros e não querer ter trabalho algum é digno dos grandes canalhas. E a lista não é pequena.
O principal argumento favorável ao projeto de integração das bacias, como é tecnicamente chamada a transposição, é que quem tem sede tem pressa. Entretanto, projeto semelhante tocado pela extinta União Soviética com o desvio dos rios Amu Darya e Syr Darya para o plantio, inicialmente, de arroz, cereais e melões e, depois, de algodão, resultou no assoreamento do Mar de Aral, que teve reduzido seu tamanho em 60% e volume em 80%, e na destruição quase total de seu ecossistema, numa das maiores tragédias ambientais do século XX. A pergunta que sempre deveria ter sido feita é se o projeto do Rio São Francisco não poderia ter consequências semelhantes.

O que nos leva ao primeiro ponto de cobrança de compromisso do governo federal. Talvez o único consenso entre os que eram contrários e favoráveis à transposição sempre tenha sido a necessidade da recuperação de toda a mata ciliar do rio. Projeto esse que andou a passos de tartaruga na gestão petista, na qual apenas alguns setores do governo Dilma tentaram apresentar um projeto de desenvolvimento integrado do São Francisco. Qualquer discussão que busque manter a vitalidade do rio e tenha qualquer viés ambiental não é apresentado à sociedade.
O que hoje se apresenta como uma solução para a escassez hídrica histórica do semiárido pode se tornar a pá de cal e provocar a desertificação definitiva da região sem um efetivo resgate do rio, vide os baixos níveis que tem apresentado, por exemplo, a barragem de Sobradinho nos últimos anos.
A integração de bacias é um projeto de 10 bilhões de reais. Antes do golpe discutia-se por pouco menos de 2 bilhões, em articulação com os estados por onde passa o rio, um projeto para não apenas recuperar a mata ciliar, mas garantir emprego e renda a toda a população no seu entorno.
Não obstante a transposição do São Francisco ser apresentada como a grande solução para o problema da seca do Nordeste, de acordo com o licenciamento ambiental do empreendimento, apenas 5% do território semiárido brasileiro e 0,3 % da população serão beneficiados.
Somente 4% da água serão destinados à chamada população difusa, 26% ao uso urbano e industrial e 70% para irrigação da agricultura. O que nos remete à questão central há décadas apontada pelos diversos movimentos sociais, cada qual no seu tempo, de que o grande problema nordestino nunca foi a seca, mas as cercas.
As áreas adjacentes aos eixos da transposição encontram-se decretadas de interesse público. Se houvesse um interesse real em atender a grande massa de trabalhadores rurais pobres do semiárido, encaminhar-se-ia a efetiva desapropriação destes territórios, destinando-os à agricultura familiar por meio da reforma agrária. Todavia, as sinalizações do governo apontam que o grande beneficiário das águas da transposição serão os velhos coronéis do sertão.
Outro ponto pouco abordado neste debate é a própria qualidade da água do São Francisco. O uso intensivo de agrotóxicos, particularmente nas áreas de fruticultura irrigada do submédio São Francisco, na região onde estão as cidades de Petrolina e Juazeiro, leva a um questionamento sobre a própria adequação desta água para o consumo humano ou animal, e até mesmo para irrigação.
Importante lembrar que o dossiê da Associação Brasileira de Saúde Coletiva sobre os impactos do uso de agrotóxicos aponta o País como o maior consumidor destes produtos no mundo. Os agrotóxicos produzem diversos efeitos externos, tanto no meio ambiente quanto na saúde humana.
As estimativas existentes apontam, de acordo com estudo feito na Universidade Essex, liderado por Jules Pretty e outros, o custo anual destas externalidades no Reino Unido, para 1996, em 2,34 bilhões de libras. David Pimentel chega a um total de 9,645 bilhões de dólares de custos ambientais e sociais do uso de pesticidas nos EUA. No Brasil, apenas Wagner Soares e Marcelo Porto fizeram uma estimativa do custo das intoxicações agudas no Paraná com base na Pesquisa de Previsão de Safras de 1998 e 1999 e encontraram um custo de 149 milhões de dólares. A transposição das águas de um rio contaminado por agrotóxicos pode agravar este tipo de impacto.
De uma forma ou de outra, o projeto da transposição traz muitas esperanças para a população do semiárido nordestino. Sua efetividade, contudo, depende de outros projetos que garantam a sustentabilidade do rio e a qualidade da água. É preciso recuperar a ideia de que as cercas são um problema maior que a seca e que se rompam os domínios baseados na posse do território com água por meio de uma radical reforma agrária.
Os caminhos tateados no ocaso do governo Dilma, como um projeto de desenvolvimento integrado do São Francisco, precisam ser percorridos com pressa. Se Temer insiste em assumir uma obra para a qual em nada contribuiu, que assuma as responsabilidades dela decorrentes.

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