Para não causar danos
ambientais e sociais, o projeto depende de outros que garantam a
sustentabilidade do rio e a qualidade da água
Quando o Brasil ainda era
império e dom Pedro II governava, surgiu a proposta de transposição das águas do Rio São Francisco como solução para
as recorrentes secas do Semiárido nordestino. O tema voltou a frequentar as
discussões nacionais no ocaso do Estado Novo getulista e reapareceu como um primeiro projeto efetivo
apenas nos estertores da ditadura, durante o governo Figueiredo.
Após a redemocratização, a
ideia de integrar bacias com as águas do São Francisco passou pelos governos Itamar Franco e FHC, mas somente saiu do papel com o presidente Lula. As obras avançaram
com Dilma Rousseff e, no último dia 10 de março, Michel Temer inaugurou o
eixo leste, enquanto o povo agradecia a Lula pela obra.
A festa de Temer na inauguração indica que o presidente tem a
intenção de se apresentar como o grande pai da obra. Que assim o seja, e que o
presidente assuma também os problemas associados ao megaprojeto. Colher os
louros e não querer ter trabalho algum é digno dos grandes canalhas. E a lista
não é pequena.
O principal argumento
favorável ao projeto de integração das bacias, como é tecnicamente chamada a
transposição, é que quem tem sede tem pressa. Entretanto, projeto semelhante
tocado pela extinta União Soviética com o desvio
dos rios Amu Darya e Syr Darya para o plantio, inicialmente, de arroz, cereais
e melões e, depois, de algodão, resultou no assoreamento do Mar de Aral, que
teve reduzido seu tamanho em 60% e volume em 80%, e na destruição quase total
de seu ecossistema, numa das maiores tragédias ambientais do século XX. A
pergunta que sempre deveria ter sido feita é se o projeto do Rio São Francisco
não poderia ter consequências semelhantes.
O que nos leva ao primeiro
ponto de cobrança de compromisso do governo federal. Talvez o único consenso
entre os que eram contrários e favoráveis à transposição sempre tenha sido a
necessidade da recuperação de toda a mata ciliar do rio. Projeto esse que andou
a passos de tartaruga na gestão petista, na qual apenas alguns setores do
governo Dilma tentaram apresentar um projeto de desenvolvimento integrado do
São Francisco. Qualquer discussão que busque manter a vitalidade do rio e tenha
qualquer viés ambiental não é apresentado à sociedade.
O
que hoje se apresenta como uma solução para a escassez hídrica histórica do
semiárido pode se tornar a pá de cal e provocar a desertificação definitiva da
região sem um efetivo resgate do rio, vide os baixos níveis que tem
apresentado, por exemplo, a barragem de Sobradinho nos últimos anos.
A
integração de bacias é um projeto de 10 bilhões de reais. Antes do golpe
discutia-se por pouco menos de 2 bilhões, em articulação com os estados por
onde passa o rio, um projeto para não apenas recuperar a mata ciliar, mas
garantir emprego e renda a toda a população no seu entorno.
Não
obstante a transposição do São Francisco ser apresentada como a grande solução
para o problema da seca do Nordeste, de acordo com o licenciamento ambiental do
empreendimento, apenas 5% do território semiárido brasileiro e 0,3 % da população
serão beneficiados.
Somente
4% da água serão destinados à chamada população difusa, 26% ao uso urbano e
industrial e 70% para irrigação da agricultura. O que nos remete à questão
central há décadas apontada pelos diversos movimentos sociais, cada qual no seu
tempo, de que o grande problema nordestino nunca foi a seca, mas as cercas.
As
áreas adjacentes aos eixos da transposição encontram-se decretadas de interesse
público. Se houvesse um interesse real em atender a grande massa de
trabalhadores rurais pobres do semiárido, encaminhar-se-ia a efetiva
desapropriação destes territórios, destinando-os à agricultura familiar por
meio da reforma agrária. Todavia, as sinalizações do governo apontam que o
grande beneficiário das águas da transposição serão os velhos coronéis do
sertão.
Outro
ponto pouco abordado neste debate é a própria qualidade da água do São
Francisco. O uso intensivo de agrotóxicos, particularmente nas áreas de
fruticultura irrigada do submédio São Francisco, na região onde estão as
cidades de Petrolina e Juazeiro, leva a um questionamento sobre a própria
adequação desta água para o consumo humano ou animal, e até mesmo para
irrigação.
Importante
lembrar que o dossiê da Associação Brasileira de Saúde Coletiva sobre os
impactos do uso de agrotóxicos aponta o País como o maior consumidor destes
produtos no mundo. Os agrotóxicos produzem diversos efeitos externos, tanto no
meio ambiente quanto na saúde humana.
As
estimativas existentes apontam, de acordo com estudo feito na Universidade
Essex, liderado por Jules Pretty e outros, o custo anual destas externalidades
no Reino Unido, para 1996, em 2,34 bilhões de libras. David Pimentel chega a um
total de 9,645 bilhões de dólares de custos ambientais e sociais do uso de
pesticidas nos EUA. No Brasil, apenas Wagner Soares e Marcelo Porto fizeram uma
estimativa do custo das intoxicações agudas no Paraná com base na Pesquisa de
Previsão de Safras de 1998 e 1999 e encontraram um custo de 149 milhões de
dólares. A transposição das águas de um rio contaminado por agrotóxicos pode
agravar este tipo de impacto.
De
uma forma ou de outra, o projeto da transposição traz muitas esperanças para a
população do semiárido nordestino. Sua efetividade, contudo, depende de outros
projetos que garantam a sustentabilidade do rio e a qualidade da água. É
preciso recuperar a ideia de que as cercas são um problema maior que a seca e
que se rompam os domínios baseados na posse do território com água por meio de
uma radical reforma agrária.
Os
caminhos tateados no ocaso do governo Dilma, como um projeto de desenvolvimento
integrado do São Francisco, precisam ser percorridos com pressa. Se Temer
insiste em assumir uma obra para a qual em nada contribuiu, que assuma as
responsabilidades dela decorrentes.
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