terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Agonia do Velho Chico aumenta com vazão ainda menor

Decisão atinge a programação na região do Baixo São Francisco


A Agência Nacional de Águas (ANA) determinou a redução imediata da vazão do rio São Francisco para 800 metros cúbicos por segundo (m³/s) nos reservatórios de Sobradinho (BA) e Xingó (AL). A decisão, que autoriza a redução até o dia 31 de janeiro, está publicada na edição desta segunda-feira (21.12) do Diário Oficial da União (DOU). A resolução foi assinada pelo presidente da agência federal, Vicente Andreu, a medida na última reunião colegiada do órgão, na sexta-feira passada, dia 18 de dezembro.

Ainda conforme a publicação, a medida foi tomada ao levar em consideração as condições hidrológicas e diante da necessidade de garantir os usos múltiplos das águas do Velho Chico. A decisão, mais uma vez, preocupa o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), pelo fato de o colegiado se posicionar sempre de maneira crítica às reduções de vazão. Soma-se a isso o atual período da piracema, quando os peixes se reproduzem e, para isso, precisam de mais água.

A decisão também atinge duramente a programação na região do Baixo São Francisco. Janeiro é o mês em que acontece, há 135 anos, a festa de Bom Jesus dos Navegantes. Uma das atrações da festa, a procissão fluvial, fica inviabilizada diante da vazão de 800 m³/s estabelecida pela ANA.

Diante da medida, a Companhia de Abastecimento de Alagoas (Casal) anunciou um plano emergencial, que exigirá um investimento superior a R$ 7 milhões, com a finalidade de instalar um sistema para captar água bruta em todos os pontos de abastecimento administrados pela empresa no Estado. A decisão foi formalizada junto à Secretaria de Infraestrutura Hídrica do Ministério da Integração e comunicada à Companhia Hidroelétrica do São Francisco.

A empresa adianta que solicitará o pagamento pelos prejuízos diretamente à Chesf, responsável pela regulação dos reservatórios. Ofício nesse sentido foi enviado pelo presidente da Casal, Clécio Falcão. “Trata-se do limite abaixo do mínimo para sucção das bombas que compõem os sistemas de abastecimento da Casal”, explica. Segundo ele, caso o investimento não seja implementado, há o risco imediato de desabastecimento em 37 municípios do Baixo Sertão, atingindo uma população estimada em pouco mais de 520 mil habitantes.

O Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco é um órgão colegiado, integrado pelo poder público, sociedade civil e empresas usuárias de água, que tem por finalidade realizar a gestão descentralizada e participativa dos recursos hídricos da bacia, na perspectiva de proteger os seus mananciais e contribuir para o seu desenvolvimento sustentável. A diversidade de representações e interesses torna o CBHSF uma das mais importantes experiências de gestão colegiada envolvendo Estado e sociedade no Brasil.



Seca em Sobradinho (BA) transforma região da barragem em cenário de ruínas

Seca expõe ruínas de cidades inundadas para a construção da barragem de Sobradinho no fim da década de 1970
Seca expõe ruínas de cidades inundadas para a construção da barragem de Sobradinho no fim da década de 1970

O vento forte movimenta as águas no lago de Sobradinho-BA. E as ondas que se formam quebram diante dos degraus da porta de uma das casas tomadas pelo rio São Francisco após a construção da barragem, no final da década de 1970. De pé sobre o alicerce quebrado, Carlos de Castro, conhecido como Cacá, 63, se lembra dos dias em que frequentou o local, na antiga cidade de Casa Nova (BA). Ali morou o seu sogro e sua atual mulher, à época namorada.
Nos quase 40 anos da construção da barragem, esta é a primeira vez que as ruínas de Casa Nova aparecem devido à redução do nível do lago. É possível distinguir alguns detalhes das casas, como as pias de lavar roupa, o azulejo branco e as caixas d'água.
A falta de chuva na nascente do rio São Francisco, em Minas Gerais, tem comprometido o reservatório. A chuva irregular já dura, pelo menos, quatro anos e o resultado é o mais baixo nível de água que já se viu nas quase quatro décadas de Sobradinho. No último dia 3, o volume do lago chegou a 1,11% da sua capacidade.
"Estar no lugar onde você nasceu e se criou faz passar um filme na cabeça", lembra Castro, que hoje é secretário da Agricultura e do Meio Ambiente do município.
Ele se lembra do nome dos moradores de todas as casas vizinhas e aponta para o muro do cemitério. A alvenaria de alguns jazigos hoje está aparente.
Em Remanso (BA), o tempo parece voltar atrás quando as águas retidas na barragem de Sobradinho assumem o antigo curso natural do Velho Chico. O nível da água baixou e se afastou cerca de 7 km da margem, revelando o antigo cais da cidade. Essa é também a distância entre a velha e a nova Remanso.
"Aqui era onde passavam os vapores. O pessoal dessa região que ia para São Paulo pegava um vapor até Pirapora [município mineiro que fica às margens do rio São Francisco], passava oito, dez dias viajando, e de lá pegava o trem para São Paulo", lembra Pedro Alves da Costa, 61, chefe de gabinete da prefeitura do município. Ele morava em Sento Sé e se mudou com a mulher em 1975 para Remanso antiga, onde abriu um comércio.
Hoje, o mesmo cais voltou a ser usado. Do local, partem as embarcações que vão para cidades que ficam em volta do lago. O baixo nível das águas no trecho, que fazem aparecer bancos de areia, vem dificultando as viagens. "Antes a gente passava direto aqui", diz José Messias, apontando para a margem oposta do lago, enquanto preparava sua embarcação rumo a Sento Sé. "Agora a gente arrodeia lá por baixo. A viagem demora uma hora e pouco, duas horas a mais."
Entre 1975 e 1977, as quase 12 mil famílias de Casa Nova, Remanso, Pilão Arcado e Sento Sé foram obrigadas a deixar suas casas e se mudar para as novas sedes das cidades. Os antigos municípios foram engolidos pelo São Francisco e deram lugar a 34 bilhões de metros cúbicos de água. As famílias foram transferidas para os locais construídos pela Companhia Hidroelétrica do São Francisco (Chesf).
A professora aposentada Mara Lília Fernandes Castro, 66, se lembra das reuniões entre a população de Casa Nova e os engenheiros da Chesf. "Víamos o descontentamento de alguns, outros não aceitavam, diziam que isso não podia acontecer. Outros acreditavam no progresso, que realmente veio. Era uma cidade gostosa pela convivência, todos se conheciam, mas lá nossa energia elétrica terminava às 23h porque era gerada por um motor a diesel."

Navegante do vapor Benjamim Guimarães, artesã e cantora lança livro com memórias

Obra narra experiência de oito anos a bordo de um vapor no Velho Chico, lendas e histórias de personagens ribeirinhos. Narrativa lembra perseguição pela ditadura

Perseguida pela ditadura, Lourdes Barroso se ocultou em um vapor, onde deu voz aos tripulantes analfabetos como escrivã de cartas endereçadas a parentes e amigos (foto: Aparício Mansur/Divulgação)

Hoje reduzidas a pequenos passeios turísticos realizados pelo Vapor Benjamin Guimarães, mantido em Pirapora (MG), as viagens das antigas embarcações entre essa cidade mineira e Juazeiro (BA) são revividas em Diário de bordo – Entre vapores e carrancas, livro da artesã e cantora popular Lourdes Barroso, que durante oito anos – entre 1965 e 1973 – fez, repetidas vezes, o percurso de 1.371 quilômetros em que o manancial é navegável. O relato vem recheado de lendas, folclore, a culinária e ricas histórias dos personagens ribeirinhos. Hoje aposentada, Lourdes fala ainda das carrancas, que ela aprendeu a fazer sobre as águas do Velho Chico. O livro foi organizado pelo fotógrafo e ambientalista Aparício Mansur.
“Muitos dos meus escritos, eu os fiz navegando nos vapores subindo e descendo o rio. Eu anotava tudo. Um dia, resolvi contar minha história. E desse emaranhado de anotações e folhas soltas surgiu o livro”, relata dona Lourdes, de 77 anos, mãe de cinco filhos e nove netos, que mora em Pirapora. A maioria das viagens da autora foi feita no Vapor São Francisco, onde viveu por quase uma década, mas ela recorda de outras “gaiolas” que circulavam entre Pirapora e Juazeiro, levando produtos como cereais, rapadura, sal, farinha e cachaça, além dos próprios passageiros. Nomes de vapores como Antônio do Nascimento, Afonso Arinos, Djalma Dutra, Paracatuzinho e Engenheiro Halfed e Benjamim Guimarães povoam a memória da artesã. “Havia também as lanchas-ônibus, que carregavam muita gente”, recorda.
Vestígios do passado: o Benjamim Guimarães é o único vapor em atividade hoje no Rio São Francisco (foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)

Lourdes Barroso lembra do tempo de duração das viagens pelas águas do Velho Chico. “Normalmente, a viagem de Pirapora até Juazeiro ou Petrolina (PE) durava de oito a 12 dias. Mas, quando o rio estava bem seco, o vapor costumava encalhar e a viagem atrasava”, conta a aposentada. A antiga navegante testemunha o processo de degradação do Rio São Francisco e se lembra com saudade que no tempo das “gaiolas”, como são conhecidos os vapores, o manancial era preservado, bem diferente da situação agonizante em que se encontra hoje, poluído e com o seu volume muito reduzido. “Naquela época, o São Francisco tinha muita água e muitas árvores nas suas margens. Era um rio alegre, um rio cheio de esperança, cheio de peixes, com muitos pescadores. Era um rio maravilhoso. Hoje, o São Francisco é um rio vazio, sem árvores por perto. O Velho Chico é triste. Nem os animais a gente vê à sua beira”, lamenta Lourdes.
A artesã aposentada relata também fatos de sua própria vida, envolta pela história do país. Natural de Serrinha (BA), na juventude ela se transferiu para Salvador, onde iniciou a vida como cantora e adotava o nome artístico de Lourdinha Gonçalves. Ela acabou participando de grupos de esquerda. Na ocasião, entre outros ativistas, conviveu com Waldir Pires, que, mais tarde, foi eleito governador da Bahia e exerceu outros cargos públicos.
Com o golpe de 31 de março de 1964, Lourdes passou a ser perseguida pela ditadura militar. Como ela mesmo relata, logo depois do golpe, fugindo para não ser presa, foi levada para Xique-Xique, onde um homem providenciou que embarcasse num vapor. Imaginou que chegaria ao Rio de Janeiro, onde encontraria sua família. Na verdade, estava sendo vítima de uma armação: dentro do mesmo vapor, foi “plantada” uma pessoa com a missão de prender ou dar sumiço na jovem cantora esquerdista.
Mas logo Lourdes conheceu o próprio chefe do vapor, o comandante Barroso, que decidiu ajudá-la. Os dois acabaram se casando e a cantora iniciou oito anos de vida dentro da embarcação, viajando com o companheiro, impedida de desembarcar, para não ser presa. Lourdes aprendeu a esculpir carrancas. Recebeu o aprendizado do mestre Guarani, o artista maior das esculturas do Velho Chico, à época.

Mensageira da saudade

Nas longas e demoradas viagens pelas águas do Rio São Francisco, Lourdes Barroso desempenhou outra atividade importante: escrever cartas. A aposentada conta que muitos tripulantes eram analfabetos e, como permaneciam meses longe de casa, recorriam a ela para escrever cartas para as mulheres e namoradas. “Eles pediam que eu escrevesse sobre a saudade que sentiam. Muitos solicitavam para escrever sobre o que compravam durante as viagens para levar para a casa. Era uma vida de sonhos e recordações”, descreve Lourdes Barroso.

A artesã e cantora aposentada ressalta que o seu objetivo ao escrever o livro sobre as viagens dos antigos vapores no Velho Chico e os personagens e histórias do povo ribeirinho foi relatar para novas gerações os fatos de um tempo que não volta. “Foram muitas histórias. Achei que era muito egoísmo guardar tudo aquilo mim. O Rio São Francisco tem muitas histórias que pessoas têm que conhecer”, conclui Lourdes.
Capa do livro Diário de Bordo (foto: Reprodução)



Ruínas da antiga Casa Nova aparecem pela primeira vez, desde a construção do Lago de Sobradinho


A seca no Lago de Sobradinho, norte da Bahia, já fez aparecer ruínas dos antigos municípios de Pilão Arcado, Remanso e Sento Sé – cidades inundadas para construção da barragem na década de 1970. Casa Nova, outro município que teve de ser inundado, foi o último a ter suas ruínas expostas devido à redução do nível do reservatório. pela primeira vez é possível distinguir novamente alguns detalhes das casas, como as pias de lavar roupa, o azulejo branco e as caixas d’água.
Entre 1975 e 1977, as quase 12 mil famílias de Casa Nova, Remanso, Pilão Arcado e Sento Sé foram obrigadas a deixar suas casas e se mudar para as novas sedes das cidades. Os antigos municípios foram engolidos pelo São Francisco e deram lugar a 34 bilhões de metros cúbicos (m³) de água. As famílias foram transferidas para os locais construídos pela Companhia Hidroelétrica do São Francisco (Chesf).
Em Casa Nova, próximo à sede do município, 86 produtores se reuniram em uma associação e construíram um canal para bombear água para as propriedades. A água de Sobradinho não está chegando no lago São Vitor, uma pequena barragem onde as fazendas captam o recurso para irrigação.
Sobradinho costumava ter um nível estável e todos os anos o lago São Vitor era abastecido, ficando entre 50% e 60% da capacidade. Não tínhamos problema com água. Somente em 2004 houve uma situação parecida, mas este ano foi o pior de todos. Fomos obrigados a fazer uma pequena transposição para não faltar água para os produtores”, relata Fernando Marins, presidente da associação.

Remanso
Em Remanso, o tempo parece voltar atrás quando as águas retidas na barragem de Sobradinho assumem o antigo curso natural do Velho Chico. O nível da água baixou e se afastou cerca de 7 quilômetros da margem, revelando o antigo cais da cidade. Essa é também a distância entre a velha e a nova Remanso. Hoje, o mesmo cais voltou a ser usado. Do local, partem as embarcações que vão para cidades que ficam em volta do lago. O baixo nível das águas no trecho, que fazem aparecer bancos de areia, vem dificultando as viagens.
Segundo boletim do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) divulgado ontem (27), o Lago de Sobradinho está com 2,19% de sua capacidade total. (fonte: Agência Brasil/ fotos: Marcello Casal Junior /ABr).